Cartaz de cinema

"O Espírito da Colmeia" por Pedro Sesinando
"Amanece, que no es poco", a Espanha felliniana de Cuerda

Publicado em 14 Set. 2021 às 18:50, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)

"Amanece, que no es poco", a Espanha felliniana de Cuerda

Evocação do cinema espanhol de finais dos anos 80 através da irrepetível comédia de tom surrealista "Amanece, que no es poco".

O Cinema espanhol, aparte comparações com outras indústrias de maior tradição como a francesa ou a italiana, pode orgulhar-se de apresentar estéticas bastante diferentes que vão desde o cinema de autor até às típicas, e normalmente bem sucedidas em bilheteira, comédias de verão.

O universo do cinema do país vizinho deixa espaço, inclusivamente, para cineastas que conseguem conjugar o cinema de assinatura com o êxito comercial, do qual Pedro Almodóvar, não sendo caso único, será o exemplo mais óbvio. Tal riqueza na paleta de cores que é o Cinema espanhol pode também explicar-se pela idiossincrasia do próprio país, com grandes diferenças culturais entre regiões que vão muito para além dos idiomas e dialectos que atravessam a sua geografia. Não será, no entanto, a única explicação.

Se nos limitarmos à região de La Mancha temos dois exemplos de autores que, à primeira vista, têm formas totalmente antagónicas de observar a mesma paisagem. Falo do próprio Almodóvar e do albacetenho José Luís Cuerda. A cultura manchega tal como retratada por Almodóvar tem, invariavelmente, uma carga opressora, necessariamente conservadora. Há, de certa forma, no cinema de Almodóvar algo de terapêutico nas invocações feitas a La Mancha e à infância, e de tal catarse advém muito da própria estética do autor. No cinema de Cuerda a invocação de La Mancha é mais leve, dir-se-ia mais Felliniana. É importante notar que a obra de Cuerda não tem a constante autobiográfica que adivinhamos nos filmes de Almodóvar. Dois dos seus filmes mais intensos, "La Lengua de las mariposas" e "Los girasoles ciegos", por exemplo, são histórias passadas na Galiza.

Mas bem antes dos supracitados títulos, estava Cuerda no início de carreira com um guião em mãos, da sua autoria, que não era considerado como projecto viável pelas produtoras. Enquanto mantinha o manuscrito na gaveta iniciou a parceria com o guionista Rafael Azcona, colaboração que resultaria no título de 1987, "El Bosque animado", cujo relativo sucesso permitiu a Cuerda ter carta branca para um novo filme.

Era a altura ideal para retirar da gaveta o guião do que seria "Amanece, que no es poco", um filme com declarado tom de comédia surrealista e cuja acção se passava precisamente na La Mancha mais profunda, nas aldeias da Sierra de Segura. Estávamos no final dos anos 80 e o Cinema espanhol vivia um fulgor muito particular, liderado por nomes emergentes como Almodóvar, Fernando Trueba, ou Bigas Luna, autores que apresentavam, na tela, uma Espanha vanguardista e moderna, um cinema transgressor à época.

Trailer "Amanece, que no es poco"

A proposta de Cuerda, um retrato da Espanha rural, era totalmente contra corrente. Ou assim parecia. O plano de Cuerda, visto à distância, parecia muito simples. A um elenco de nomes consagrados do Cinema espanhol, liderado pelo "muy taquillero" Antonio Resines, juntar-se-iam os habitantes dos três povoados onde seria rodado o filme. Estes não seriam apenas figurantes, mas também protagonistas da acção.

A premissa é também ela bastante simples. O protagonista, Teodoro, jovem engenheiro e professor numa universidade norte-americana, viaja de sidecar com o pai para desfrutar de um ano sabático. A estrada leva-os até um aldeamento perdido na Mancha onde homens são plantados no chão, onde mulheres dão à luz instantes depois da concepção, onde a guardia civil multa gente por plagiar Faulkner, ou onde o professor dá aulas em gospel.

As cenas sucedem-se nestes episódios surreais, com óbvio subtexto de caricatura social. Sente-se a influência do Fellini de Amarcord, não só no tom quasi-onírico - no sentido em que o apresentado se assemelha mais a uma memória de infância do que a uma realidade concreta - mas também em como as próprias dinâmicas da povoação e das suas pessoas são em si mesmo uma personagem.

A presença de Luis Garcia Berlanaga é, também ela, bastante evidente e creio que totalmente assumida por Cuerda. Tal como em Berlanga, José Luís Cuerda procura deixar a nú as particularidades de uma Espanha profunda, caricaturando as suas forças vivas, clero, alcaide e guardia civil, e a relação das instituições que representam com a própria população. Cuerda, tal como Berlanga, fá-lo sem paternalismos, mas não rejeitando a redução ao absurdo. E fá-lo de forma universal, permitindo extrapolar a parábola para lá das fronteiras manchegas.

"Amanece, que no es poco" (1989) é um filme irrepetível, não só dentro da própria obra de José Luis Cuerda, que faleceu em 2020, mas também dentro do singular cinema espanhol. Para aferir do impacto que o filme teve em Espanha, mais significativo do que o êxito que possa ter tido na altura do lançamento comercial é a forma como resistiu ao teste do tempo e se introduziu no léxico dos espanhóis através de incontáveis e inconfundíveis frases. Que o culto que gerou aqui ao lado possa extravasar fronteiras e que possamos ouvir em sala frases como "Yo podía haber sido una leyenda. O una epopeya, si nos juntamos varios." Não era pedir demais.