Publicado em 30 Oct. 2025 às 18:43, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Através da sua protagonista de 13 anos, Julia Ducournau constrói um retrato fragmentado e sensorial de uma sociedade em transformação.
Não será exagerado afirmar que um dos filmes mais impactantes de 2024, pelo menos a nível mediático, nos chegou pelas mãos da francesa Coralie Fargeat, contando com o inestimável contributo de Demi Moore e Margaret Qualley.
Falo, obviamente, de "A Substância", que teve a particularidade de trazer elementos de horror corporal para uma esfera mais generalista, usando o grotesco para eliminar qualquer subtileza relativamente à parábola que Fargeat se propôs construir e que se foca - podemos concluir com alguma amplitude de análise - na condição feminina em confronto com uma indústria que descarta impiedosamente as mulheres que se atrevem a envelhecer.
Não será também um salto de lógica demasiado ambicioso, afirmar que "A Substância" vem precedido de um filme de outra realizadora francesa, Julia Ducournau, "Titane", que surpreendeu Cannes em 2021 ao arrebatar a Palma de Ouro.
É a partir da mesma linha estética de "Titane" – e que de resto já vinha trabalhando desde "Raw", o seu primeiro filme – que Ducournau constrói "Alpha", não se furtando ao horror corporal enquanto subgénero, mas aplicando-o sobre uma narrativa convencionalmente melodramática, embora de traços distópicos.
O filme ancora-se num contexto de dinâmica familiar disfuncional tal como percecionada por uma adolescente de 13 anos, de nome Alpha precisamente, para daí construir uma chegada à vida adulta com alguma crueldade, que permite a Ducournau entrar por vários temas disruptivos, construindo um quadro de realismo mágico para retratar uma França ainda a viver a ressaca do período pós-colonial, e, em simultâneo, a entrar numa nova sociologia, que se caracterizava pela ameaça do advento das drogas e pelo flagelo epidémico do HIV.

Este período temporal em que se situa a narrativa é mais intuído que declarado, já que Ducornau não parece fazer questão de manter demasiado rigor no contínuo temporal, fazendo a narrativa saltar livremente entre a Alpha adolescente e a Alpha criança.
Para ajudar a este ambiente de onirismo fantástico, Ducournau nunca nomeia o vírus, mas apresenta-o segundo todos os estigmas a que foi votado quando ainda se assumia que a SIDA era um castigo divino para homossexuais e toxicodependentes – a realizadora fá-lo de forma estilizada, dando à doença a suave característica de transformar lentamente as suas vítimas em estátuas marmorizadas.
A narrativa começa por se centrar em Alpha e no receio que esta tem de poder estar infetada por ter feito uma tatuagem numa festa, servindo este evento de pretexto para que sejamos apresentados à sua mãe (Golshifteh Farahani), enfermeira, e, posteriormente ao tio Amin (Tahar Rahim), que vive à deriva, em função da sua dependência e da generosidade da irmã.
De resto, é precisamente quando explora a fraternidade entre a mãe e o tio que Ducournau consegue levar a narrativa para um território mais interessante. Embora a personagem de Amin se revista de alguns estereótipos do dependente, é na relação entre os irmãos que reside a grande força do filme, pela forma como Ducournau nos leva a intuir um passado tumultuoso entre ambos, ou como vai destapando a relação de cada um deles com o presente, com a condição de descendentes de imigrantes e com o sistema de crenças em que se criaram. Mas, é sobretudo, pela forma como Ducornau faz balançar a relação entre momentos de ternura e tranquilidade com uma violência emocional própria de quem agora habita mundos diferentes que o filme consegue chegar a uma dimensão humana que nem sempre está disposto a explorar.

Talvez o pecado de "Alpha" seja querer chegar a demasiados pontos sem aprofundar aqueles que pareciam ser de maior relevância, perdendo-se algures pelo caminho. Exemplo disso é, não só a relação entre Amin e a irmã, mas também o pouco protagonismo dado à personagem interpretada por Finnegan Oldfield, o professor de inglês de Alpha que parecia ter mais para oferecer do que apenas servir de arquétipo à angústia em que vivia a comunidade homossexual à época e à hostilidade a que foi sujeita.
Ainda assim, "Alpha" não deixa de parecer um passo em frente no percurso de uma realizadora que vem apurando um sentido estético próprio, mas com o meritório intuito de servir uma narrativa, afastando-se do mero exercício de estilo. Nesse aspeto, "Alpha" é, de certa forma, o oposto de "A Substância", e reside aí o seu grande trunfo, na forma como se permite utilizar o grotesco para, mais do que confrontar, adicionar camadas de subtileza à alegoria que quer construir.