Cartaz de cinema

"O Síndrome do Vinagre" por Samuel Andrade
A técnica de "Oppenheimer"

Publicado em 20 Jul. 2023 às 19:00, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)

A técnica de "Oppenheimer"

O novo filme de Christopher Nolan é para ver no maior ecrã à disposição do espectador. E o segredo reside nas suas especificações técnicas.

Não é a primeira vez que esta rubrica esboça um exercício de crítica cinematográfica centrado nos valores analógicos – sejam eles de produção ou integrados no próprio argumento – de um filme contemporâneo.

"Oppenheimer", o novo filme de Christopher Nolan, que biografa a vida e obra do cientista que, na década de 1940, liderou o Projeto Manhattan para a conceção da primeira bomba atómica, reveste-se de diversos aspetos merecedores de análise semelhante.

Deixo a análise das virtudes, ou deméritos, artísticos de "Oppenheimer", para a crítica especializada. A atenção do Síndrome do Vinagre, durante o visionamento do filme, centrou-se quase em exclusivo na ambiência analógica (a vários níveis) aqui congregada por Christopher Nolan. E, desse ponto de vista, pode-se afiançar que as expetativas foram satisfatoriamente cumpridas.

Isto porque, para discorrer sobre um filme como "Oppenheimer", é inevitável ponderar sobre os detalhes da sua produção – um trabalho de bastidores (que só não chamamos invisível graças a alguma cobertura jornalística) ímpar no seio da produção cinematográfica moderna e com resultados inteiramente distintos.

Se o facto de ter sido inteiramente filmado em película de 65mm (o chamado "grande formato") já é pouco usual, a dimensão que Nolan idealizou para "Oppenheimer" pediu, desenvolvimento técnico e engenharia analógica como há muito não se via na indústria cinematográfica.

A Kodak, em parceria com os laboratórios Fotokem, concebeu película de 65mm IMAX a preto e branco especificamente para a rodagem de "Oppenheimer"– um suporte que nunca existiu na história do cinema – e a IMAX Corporation criou modelos de câmaras de propósito para alojar este filme de grande formato.

Importa esclarecer que 65mm é o formato de rodagem. Por norma é posteriormente otimizado para a projeção em 70mm. A diferença de 5mm entre os dois formatos é ocupado pela banda sonora incorporada na cópia de exibição comercial.

Destas especificações, resultam não apenas uma impressionante projeção do filme no analógico 70mm IMAX, ou em IMAX digital, mas também os laivos de western americano dos anos 50 que resultam da obtenção de imagens em grande escala – algo visível, nomeadamente, nas sequências em Los Alamos, onde a bomba atómica foi desenvolvida.

No entanto, esta circunstância vai para além de um mero pormenor, ou capricho técnico; em concreto, os segmentos do filme, rodados com a mencionada película de 65mm a preto e branco, demonstram capacidades que funcionam em prol dos factos históricos aqui recriados.

Nolan recorre àquele formato para se centrar na personalidade de Lewis Strauss (interpretado por Robert Downey Jr.), o empresário norte-americano que presidiu à Comissão de Energia Atómica dos Estados Unidos e, historicamente, indicado como um dos principais responsáveis pela desonra pública e política de J. Robert Oppenheimer, durante o período que ficou conhecido por Macarthismo.

Por intermédio daquele suporte, estas sequências revelam e, até, extravasam os atributos – ao nível de contraste, textura, grão e resolução – inerentes à natureza da imagem a preto e branco.

Por outro lado, exibem uma qualidade dicromática em pleno entrosamento com o aspeto dos documentários noticiosos (os apelidados newsreels, ou atualidades cinematográficas que, até à década de 1960, eram maioritariamente registados em filme de 35mm) daquela época, que constituíram a principal vertente jornalística das comissões de inquérito em torno de Oppenheimer, Strauss, ou da energia nuclear como arma de guerra – um exemplo disso, protagonizado pelo próprio Lewis Strauss, pode ser visto nos arquivos da Footage Farm.

Oppenheimer

Nestes parágrafos, cumpre referir que o pendor analógico de "Oppenheimer" está patente noutros valores de produção.

A tecnologia não computorizada (osciloscópios, cronómetros mecânicos, as câmaras de filmar em 16mm que captaram os primeiros ensaios atómicos) usada pelos cientistas do Projeto Manhattan; as sequências abstratas, demonstrativas de conceitos como fissão nuclear, átomos instáveis, ou aceleração de partículas, foram obtidas por meio de efeitos especiais práticos (vidros partidos, fumo, gotas de água...) sem qualquer intervenção de CGI; e o Trinity Test, a primeira detonação nuclear da história da Humanidade, surge-nos na forma de uma engenhosa combinação de pirotecnia e perspetiva forçada.

Formal e visualmente, "Oppenheimer" é irrepreensível e, independentemente da apreciação pública ou crítica que conheça, representa um dos eventos do ano – locais como Londres ou Paris levaram mesmo o termo "evento" ao seu sentido literal – a favor da experiência do cinema em sala.

E, de todos os fatores em jogo, essa experiência revelar-se-à como o maior mérito do filme. Não por acaso, Christopher Nolan tem investido bastante na sensibilização de que o lugar da Sétima Arte é em sala e no maior ecrã à disposição do espetador.