Publicado em 20 Mai. 2023 às 10:35, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)
Não é credível que aconteça um ressurgimento do VHS semelhante ao dos discos de vinil. Mas o seu impacto cultural garante que o suporte não desapareceu por completo.
Historicamente falando, a vida e a morte do VHS (sigla de Video Home System, comummente designadas como cassetes de vídeo) tem datas quase perfeitamente balizadas.
Começa em 1976, o ano em que a Victor Company of Japan iniciou a comercialização do suporte, e termina em 2006, quando "Uma História de Violência", de David Cronenberg, se tornou no último título comercial editado em VHS, com um epílogo em julho de 2016, com a cessação oficial do fabrico de leitores de vídeo.
O resto, apraz dizer, é história agora convertida em nostalgia.
Se pretextos fossem necessários para elaborar alguma prosa sobre o VHS, talvez constitua um bom ponto de partida a gradual convicção de que as plataformas de streaming, em toda a sua comodidade e rapidez de acesso, não conseguiram substituir o sentimento de posse e conservação caracteristicamente humanos; o recente anúncio do término, pela Netflix, do serviço de distribuição física de títulos em DVD (e respetivas implicações) é, somente, uma acha para esta "fogueira".
Não admira, assim, que se multipliquem os textos de opinião acerca dos benefícios da chamada média física, havendo mesmo quem já se refira aos tempos atuais como a "nova era dourada" dos colecionadores de cinema em DVD ou Blu-Ray.
Nestes discursos, saliente-se, pouco se invoca o VHS. Contudo, para quem faça uma pesquisa detalhada sobre o tema, revela-se inegável que o suporte está a conhecer uma vida anónima, próxima do secreto e na raia do sub-reptício.
"Secreto" e "sub-reptício" são, aliás, adjetivos que definem a própria história e influência deste suporte. A fita magnética do VHS foi protagonista de episódios de oposição político-cultural no Irão e na Roménia, e esteve na origem de uma badalada polémica, na década de 1980, que envolveu censura cinematográfica no Reino Unido.
Atualmente, o influxo da cassete de vídeo manifesta-se das mais variadas maneiras e contracorrente ao seu passado.
Na vertente comercial do VHS, o estatuto dos clubes de vídeo acompanhou o desaparecimento do suporte: cadeias de retalho emblemáticas, como a Blockbuster, ou a Family Video, fecharam portas. Negócios semelhantes, no estado norte-americano do Minnesota, passando pelo Rio Grande do Sul, no Brasil, e até Reiquiavique, na nortenha e fria Islândia, conheceram sorte idêntica. Manter um estabelecimento de aluguer de vídeo é, e citando um artigo sobre esta realidade em Espanha, um ato de "resistência contra a Netflix".
De bem de consumo, o VHS é, agora e no seio da sua obsolescência tecnológica, um inusitado objeto de culto, de coleção, de (re)descoberta artística, de arquivo dum passado recente e espelho de obsessões e paixões socioculturais que teimam em não desaparecer.
Então, por que formas se mantém hoje o "espírito VHS"? Inevitavelmente, a relação entre o suporte e a Internet é a principal expressão desta realidade, assente na digitalização e posterior publicação de conteúdo audiovisual conservado em fita magnética.
Páginas como o Internet Archive (por exemplo, o "VHS Vault" e o "Lusitania TV"), o perfil de YouTube Supertape VHS Video Archive, ou o canal de streaming FORGOTTEN_VCR disponibilizam milhares de entradas de material – para todos os paladares – registado em VHS.
Ainda em ambiente digital, assiste-se ao fenómeno da monetização (por vezes, extrema, levando já alguns a falar em especulação de preços) da cassete de vídeo, nomeadamente de edições comerciais e vendidas online.
Por exemplo, títulos da coleção Black Diamond, comercializada pela Disney em meados da década de 1990, já envolveram transações acima dos mil dólares por filme; uma VHS de "Regresso ao Futuro", selada de fábrica e cedida pelo ator Tom Wilson, foi leiloada em 2022 por 75 mil dólares; uma primeira edição de "Exterminador Implacável", também em hasta pública, chegou aos 32 mil dólares; os primeiros três filmes da saga "Rocky" foram arrematados por 53 mil dólares; e o raro "Nukie", obra de ficção-científica produzida na África do Sul e considerado "um dos piores filmes de todos os tempos", foi vendido no eBay por mais de 80 mil dólares.
Por outro lado, existem demonstrações mais clássicas de afeto pelo VHS. O Found Footage Festival, organizado desde 2004 em várias cidades dos EUA, baseia a sua programação – toda composta por vídeos invulgares, ou humorísticos – a partir de material gravado em cassetes de vídeo e adquirido em lojas e feiras de produtos em segunda mão.
No âmbito da valorização recente do VHS, e de forma menos mediática, a preservação da Sétima Arte conservada naquele suporte ganha cada vez mais relevo junto de arquivos e técnicos de restauro fílmicos. Instituições como a Yale University Library, que se tem debruçado sobre o filme de terror e exploitation dos anos 70 e 80, ou iniciativas como o XFR Collective, detêm estatuto pioneiro nesse trabalho.
Por fim, as memórias da atividade humana registadas em fita magnética – sejam elas ternas, culturais, judiciais, inconvenientes ou, até, macabras, encontram, na nossa contemporaneidade, um dos seus mais improváveis repositórios.
Apesar deste extenso rol de evidências, não é credível que ocorra um ressurgimento do VHS como aconteceu com os discos de vinil, e a probabilidade de voltarmos a ter um lucrativo clube de vídeo nas redondezas do nosso bairro residencial é menos que zero, mas o seu impacto cultural nos dias que correm garante que o suporte não desapareceu por completo.
Há motivos, portanto, para acreditar na superação do VHS face ao esmagador predomínio de produção e distribuição audiovisual em suportes digitais. E ficarei perfeitamente feliz com uma realidade em que o "VHS lives", quer se manifeste como nicho de mercado, paraíso de geeks do analógico ou, parafraseando a sentimental reividicação preemptiva de uma recente campanha publicitária, "when the world ends, and the internet streams no more, we'll still be here".