Publicado em 5 Jul. 2022 às 20:45, por Pedro Sesinando, em Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia, Cinema Europeu)
Mal recebido quando da estreia, abandonado ao longo de décadas, o filme de Jean Eustache ganha segunda vida e chega aos cinemas portugueses esta semana, após restauro digital.
Consta que nos seus primeiros anos em Paris, Jean Eustache passava grande parte dos seus dias na redacção do Cahiers du Cinéma, movido pela mesma paixão pelo Cinema que o levara a mudar-se para a capital francesa aos dezanove anos vindo de Pessac. Embora nunca tenha escrito no Cahiers, esta frequência permitia-lhe absorver as minudências do ofício e, claro, contactar com os estandartes da Nouvelle Vague: Rohmer, Truffaut, Douchet ou Rivette.
Na curta obra de Eustache - 13 filmes em 18 anos, e apenas duas longas metragens de ficção - há de facto uma óbvia relação com a estética da Nouvelle Vague, mas de forma quase marginal.
Tal como Jean Douchet definiu o cinema de Eustache, após ter contactado com as suas primeiras curtas-metragens, "era a intrusão do estranho no mundo pequeno burguês que era o nosso. A intrusão de um outro meio social e cultural".
De facto, quando em 1973, após algumas discretas curtas metragens e trabalhos documentais, Jean Eustache lança "La Maman et La Putain" (título português "A Mãe e a Puta"), a sua primeira longa de ficção, crítica e público identificariam a obra como descendente da Nouvelle Vague, um passo em diante relativamente a uma geração de autores que começava a entrar numa diferente fase de maturação e, salvo excepções, menos dada a vanguardismos.
Baseado numa experiência pessoal de Eustache ("os meus filmes são tão autobiográficos quanto a realidade pode ser", dizia), "La Maman et La Putain" segue os passos de Alexandre, interpretado por Jean-Pierre Léaud, um jovem que faz vida a vaguear pelos cafés de Saint-Germain-des-Prés.
Com tanto de idealista como de cínico, Alexandre (Jean-Pierre Léaud) é o arquétipo de uma juventude que vive no período em que o desencanto do período pós-maio de 68 já se começa a sentir. Tem, no apesar disso, um fulgor apaixonado a debitar opiniões, declamando-as de um improvisado e imaginário púlpito, um profeta sem massas.
Vive no apartamento de Marie (Bernadette Lafont) quando conhece Veronika (Françoise Lebrun), por quem também se apaixona. Mais que viver o dilema de estar apaixonado por duas mulheres, Alexandre vive apaixonado por si mesmo, alimentando esse narcisismo através do afecto que lhe rendem as duas mulheres.
Marie, "la maman", tem não só o papel de amante como também de cuidadora, sendo a única garantia de tecto e provisão que Alexandre tem. Veronika, "la putain", manifesta as suas debilidades afectivas através da proximidade física, uma liberdade sexual que intimida Alexandre ainda que este o não admita.
Apesar de focado no protagonista masculino e de como as relações à sua volta se desenrolam, são as personagens femininas que carregam o filme na sua essência mais subterrânea.
Tanto Marie como Veronika partem de uma situação de complacência e tensão reprimida evoluindo para erupções emocionais tão decisivas para a narrativa como ainda proporcionam os momentos mais belos do filme. Observe-se a cena de Bernardette Lafont (Marie) sentada na cama a escutar na íntegra "Les Amants de Paris" pela voz de Edith Piaf.
Em Alexandre estão bem representados os maneirismos de uma silenciosa reacção a uma revolução que ficou aquém - a sua aversão a Sartre, a forma como menoriza o feminismo e outros movimentos que ganharam tracção com o maio de 68, tudo inevitavelmente interpretado como uma resposta de Eustache à atitude engagé da Nouvelle Vague.
É um dos pontos mais interessantes do filme de Eustache: como não se furta a registar o tempo em que vive, assumindo-se pós-Nouvelle Vague, embora não rejeitando descender dessa mesma estética.
Para além da presença de Godard a pairar (Jean-Pierre Léaud a mimetizar uma cena de "Une Femme est une Femme"), é evidente a invocação a Rohmer, especialmente o da fase dos "Contos Morais", tanto na forma como as personagens parecem sujeitar-se a uma experiência social, como no modo de estenderem os monólogos, declamando o texto sem coloquialismos de linguagem.
Vencedor de um Grande Prémio Especial do Júri em Cannes em 1973, "La Maman et La Putain" é justamente considerado um dos filmes mais importantes do cinema francês da década de 70. Regressou ao festival em 2021, para abrir a secção Cannes Classics, numa sessão que contou com a presença de Jean-Pierre Léaud e Françoise Lebrun.
Se ao primeiro filme, Eustache era já considerado um autor diferenciado, identidade que tentaria transportar para a sua segunda longa metragem, "Mes Petites Amoureuses", embora sem o mesmo impacto, com "La Maman et La Putain", o realizador ganhou merecido espaço no olimpo do cinema francês, influenciando inúmeros cineastas de gerações posteriores, sendo talvez o exemplo mais óbvio o Philippe Garrel da fase em que criou "Les Amants Réguliers" e "La Frontiére de l'Aube".
Jean Eustache suicidou-se em Paris, a 5 de novembro de 1981, aos 42 anos. O que terá deixado por fazer resta-nos imaginar.
"La Maman et La Putain" chega às salas de cinema portuguesas a 7 de julho, num restauro digital em 4K e distribuído pela Leopardo Filmes que adquiriu toda a filmografia de Jean Eustache. A estreia dos restantes filmes acontecerá em datas a anunciar.