Cartaz de cinema

"O Síndrome do Vinagre" por Samuel Andrade
A insustentável leveza do streaming

Publicado em 2 Jun. 2021 às 11:53, por Samuel Andrade, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: Síndrome do Vinagre)

A insustentável leveza do streaming

Sobre "1971: O ano em que a música mudou tudo", em exibição na Apple TV+, e de como as plataformas de streaming falham em promover os seus melhores conteúdos.

Não será a primeira vez, nem – suspeito – a última, que me disponho a elogiar, neste espaço, os méritos dos filmes compostos por imagens de arquivo, também designados por documentários "found footage" ou "collage films" e, especialmente, as reflexões e/ou observações históricas a partir de materiais registados na época dos acontecimentos destacados.

O termo tornou-se refém de um subgénero do terror construído ao redor de falsos documentários, mas a sua origem permanece ligada ao verdadeiro cinema documental. Este método de cinema documental não é recente (na década de 1930, por exemplo, Joseph Cornell ou Henri Storck já haviam experimentado com o formato) e, no nosso país, filmes como "Deus, Pátria, Autoridade" (1975, de Rui Simões) ou "Fantasia Lusitana" (2010, de João Canijo) são ideais para uma introdução ao género. Além disso, nos últimos anos, multiplicam-se os títulos que elegem os arquivos de imagens em movimento como matéria-prima cinematográfica. Não por acaso, e só no presente mês de junho, as nossas salas de cinema vão acolher três documentários "found footage": "As Mulheres Fazem Cinema", "Fantasmas do Império" e "Funeral de Estado".

Paralelamente ao grande ecrã, as plataformas de streaming têm sido terreno fértil para esta tipologia de documentário; em particular, as séries "true crime", que amiúde estreiam nas grelhas da Netflix e da HBO, são meios privilegiados para a observação de montagem de imagens de arquivo.

No âmbito desta oferta digital, o catálogo da Apple TV+ apresenta, desde 21 de maio, um dos mais recentes e melhores trabalhos de "found footage" para televisão: "1971: O ano em que a música mudou tudo".

Série de oito episódios, supervisionada por Asif Kapadia (o mesmo realizador de "Senna" e "Amy", documentários criados a partir dos arquivos das personalidades visadas), coloca em paralelo os acontecimentos históricos daquele ano e a sua influência na criatividade musical de David Bowie, John Lennon, os Rolling Stones, Aretha Franklin, Bob Marley, Marc Bolan, Marvin Gaye, Tina Turner ou Elton John.

O modo como a série agrega a sua imensidão de registos (oriundos de canais de televisão, arquivos de cinema e rádio, cinematecas e filmotecas, ou de simples filmes domésticos) transforma "1971: O ano em que a música mudou tudo" em algo que se vê num fôlego. Por intermédio do seu trabalho de montagem, somos espectadores – para não dizer mesmo "testemunhas oculares" – de uma época marcada por convulsões políticas, transformações sócio-económicas e uma profunda revolução cultural de que a música foi um dos principais expoentes.

Se enaltecemos a Apple TV+ pela aposta na disponibilização de conteúdo de qualidade, o mesmo não se poderá aplicar à inexistente promoção que "1971: O Ano em que a música mudou tudo" conheceu. Tal estratégia (ou ausência dela), numa análise breve e pessoal, acarreta dois nocivos predicados, que tanto atingem aquela chancela como a generalidade dos serviços de streaming:

  1. Impede a visualização de produtos televisivos de evidente utilidade lúdica e pedagógica junto de uma audiência alargada;
  2. Adensa a perceção de que a oferta audiovisual nestas plataformas é definida pelo critério único da quantificação de títulos disponíveis, sem um fio condutor de programação (alguns, como Martin Scorsese em ensaio redigido para a Harper's Magazine, chamam-lhe "curadoria") nem garantias de imperecibilidade digital. Pessoalmente, e no que a "1971: O ano em que a música mudou tudo" diz respeito, já revi alguns episódios e não desdenharia comprar uma edição física da série.

1971: O ano em que a música mudou tudo

No caso concreto da série de Asif Kapadia, o argumento de que as suas temáticas (músicos anglo-saxónicos, eventos históricos nos Estados Unidos da América e na Grã-Bretanha) não são convidativas a uma promoção da série em mercados internacionais, é aceitável. Por outro lado, também é inegável que a acessibilidade, tanto tecnológica como económica, destas plataformas, aliado ao conceito da educação do público pelo audiovisual, seria quase um acto de responsabilidade social.

Assim, para além dos seus opacos modelos de negócio, da desleal concorrência com as salas de cinema, do incerto impacto ambiental, ou das subjetivas métricas de contabilização de espectadores, reside aqui a efetiva e "insustentável leveza do streaming": se a esmagadora maioria dos seus conteúdos não merece promoção, e com a presença nos catálogos a ser condicionada pelo número de "visualizações" que cativa, então as plataformas de streaming não são mais que um fugaz capítulo na utopia da "democratização" do cinema e da televisão pelas maravilhas do digital. Aparentemente, esse objetivo continuará a ser alcançado por via dos suportes físicos; mas isso já são "outros quinhentos"...

Ao leitor, seja ou não aficionado do rock e pop dos anos 1970, recomenda-se vivamente este "1971: O ano em que a música mudou tudo".