Publicado em 11 Jun. 2025 às 15:38, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Andrea Segre reconstrói o percurso de Enrico Berlinguer nos anos mais conturbados da história recente italiana, revelando a esperança frustrada numa mudança profunda e duradoura.
A Itália que entra nos anos 70 do século XX é um país que se confronta com a perda da inocência. O fim de um idílio, nem sempre pacífico, que vinha dos anos 50, onde, de uma sociedade maioritariamente rural e conservadora, se partiu para a mudança provocada pela industrialização e pela subida do consumo das famílias. Ao mesmo tempo, o progresso social sustenta-se, em grande parte, nos movimentos estudantis e organização dos trabalhadores que, vindos de todo o país, se concentram agora nos grandes centros industriais da Itália setentrional.
Esta mudança gera, porém, movimentos de contrarreação, de teor extraparlamentar que vão do anarquismo libertário ao nacionalismo saudosista de inspiração fascista, mergulhando o país num estado de tensão latente que rebentará finalmente numa fatídica tarde de dezembro de 1969, quando um ataque terrorista à bomba na Praça Fontana em Milão provoca 17 mortos e quase uma centena de feridos.
É, portanto, numa Itália a viver a primeira vaga dos "anos de chumbo" que Enrico Berlinguer emerge como secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), à época um partido de grande expressão parlamentar, a ponto de influenciar as capacidades governativas da incumbente Democracia Cristã (DC), partido de Andreotti e Aldo Moro, figuras antagónicas dentro de um mesmo partido que discute alianças para poder governar.
"A Grande Ambição" (Berlinguer - La grande ambizione), de Andrea Segre, propõe-se seguir Berlinguer a partir da queda do governo de Salvador Allende no Chile, em 1973, derrubado pelo golpe que dará início à sinistra ditadura de Pinochet, focando-se num período complicado para o PCI e, em particular, para Berlinguer, que se debate com duas frentes abertas – uma de política interna, sobre como usar a sua força eleitoral para evitar que a DC se alie aos fascistas, e a outra motivada pelo afastamento da linha política do partido relativamente à URSS, à época encabeçada por Leonid Brejnev.
O dilema relativamente a Moscovo cresce após o atentado à vida de Berlinguer durante a sua visita à Bulgária, sendo, por outro lado, incrementado pela preocupação que as forças estabelecidas em Itália – que Segre personifica no industrial Gianni Agnelli, líder do grupo FIAT, através de declarações de arquivo – manifestam relativamente aos comunistas italianos e à sua ascensão eleitoral.
Estas ameaças veladas, levam a que vozes dentro do PCI entendam como perigosa a ideia de se perder totalmente a proteção soviética face a um mundo em plena guerra fria, deixando o partido e o país à mercê da ingerência dos EUA que procuravam influenciar o institucionalismo democrático italiano em desfavor dos comunistas, através de manobras opacas como a tristemente célebre Operação Gládio.
É nesta Itália polarizada e caracterizada por circunstâncias sociológicas muito particulares, impossíveis de extrapolar para outras realidades geográficas, que Segre molda a figura política e pessoal de Berlinguer - com o inestimável contributo do ator Elio Germano – para construir "A Grande Ambição".
À semelhança do que transmitia em público e do que ainda hoje persiste no imaginário dos italianos, Germano e Segre constroem um Berlinguer afável, tanto em público como no seio familiar. Alguém que, embora revelando por vezes alguma hesitação estratégica, se apresenta como assertivo nas convicções e com um pensamento político sólido.
Com a "A Grande Ambição", Segre dá continuidade a uma saudável tradição do cinema italiano, que não perde uma oportunidade de fazer o país olhar-se a si mesmo através da sua história recente, como já haviam feito Marco Bellochio com "Bom dia, noite", a propósito do rapto e assassinato de Aldo Moro, Paolo Sorrentino com o retrato satírico de Giulio Andreotti em "Il Divo", ou Nanni Moretti sobre Berlusconi em "O Caimão".
Segre propõe abordar uma figura que, embora menos exuberante quando comparada com Andreotti ou Moro, esteve na primeira fila da vida política dos tempos convulsos da Itália dos anos de chumbo, fazendo-o num tom melancólico e deixando intuir no legado de Berlinguer uma ideia nostálgica da Itália que podia ter acontecido, mas que nunca chegou.
Não será coincidência que, embora o filme termine com imagens de arquivo do funeral de Berlinguer em 1984, o verdadeiro epílogo de "A Grande Ambição" se dê quando é descoberto o corpo de Aldo Moro, assassinado pelos terroristas das Brigadas Vermelhas e deixado num carro na via Michelangelo Caetani em Roma.
Nessa tarde de maio de 1978, com a morte de Moro cairia também o denominado "Compromisso Histórico", o acordo político entre a DC e o PCI que visava pacificar a Itália política. Era essa, pelo menos, a (grande) ambição de Berlinguer.