Publicado em 31 Mar. 2024 às 16:37, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
O filme de João Salaviza e Renée Nader Messora movimenta-se num compromisso saudável entre luta política e estética cinematográfica, sem presumir respostas certas, nem consensos.
Sobre a condição dos povos indígenas do Brasil, mais interessante do que a ideia romântica de preservação cultural que parece apenas apaziguar um certo paternalismo ocidentalizado é o pensar como estas comunidades se posicionam estrategicamente de forma a proteger o direito à terra e à identidade. Concretamente, na forma como se relacionam com o Brasil institucional e como combatem a ameaça à preservação do seu espaço.
Parece ser sobre esta égide que João Salaviza e Renée Nader Messora constroem "A Flor do Buriti", longa-metragem que se segue a "Chuva é Cantoria na Aldeia dos Mortos" e que dá continuidade ao trabalho da dupla de realizadores com os krahô, povo indígena do centro do Brasil.
O filme parte da ideia de memória como base para o reconhecimento da identidade do povo krahô e da preservação dessa mesma identidade, tendo como pano de fundo a transmissão oral do massacre de 1940, quando o Brasil estava sob a presidência de Getúlio Vargas, em que dezenas de pessoas da comunidade foram mortas às mãos de mercenários a soldo dos fazendeiros que cobiçavam as terras indígenas.
Embora nem sempre conseguindo escapar do epíteto maldito de filme etnográfico, a "A Flor do Buriti" aproveita-se das idiossincrasias próprias do filme de género para ir um pouco mais além, tecendo um registo com várias camadas de memória e esboçando um vaso comunicante entre o Brasil de Vargas e o Brasil atual – não por acaso, o filme termina com o encontro dos povos indígenas em Brasília - passando pela era de Bolsonaro, cuja figura atravessa o filme como um espectro, intuindo-se a ameaça velada aos direitos territoriais dos povos indígenas.
Ainda que mantenham um cunho político marcado, Salaviza e Messora permitem-se aproveitar a singularidade da paisagem humana e cultural para fugir a uma componente puramente panfletária, permitindo-se algum – recomendável, diria - escapismo estético e narrativo que atribui um carácter mais cinematográfico ao filme, sem, no entanto, cair na armadilha de infantilizar o quotidiano dos krahõ.
Sendo obviamente um registo de admiração para com a comunidade krahô, "A Flor do Buriti" não pretende ser um olhar de fora para dentro da Aldeia da Prenda Branca, nem presume ter respostas, ou sequer apregoar consensos sobre as formas de luta deste e de outros povos indígenas do Brasil. Sobretudo, não se atreve a funcionar como um dicionário que traduza o modo de vida dos krahõ para um formato inteligível ao comum espectador do cinema ocidental.
Tal como referiu João Salaviza numa entrevista, mais do que um tratado definitivo sobre os krahô, ou sequer sobre os povos indígenas do Brasil, "A Flor do Buriti" é a "materialização de um encontro", um registo presente de como uma comunidade convive com as circunstâncias e se apoia na memória para pensar o futuro.
2024 | Documentário | 123 min
Com Francisco Hyjnõ Krahô, Ilda Pratpo Krahô, Luzia Cruwakwyj Krahô
Realização João Salaviza, Renée Nader Messora
Class. etária M/12
Estreia em Portugal 21 Mar. 2024
Distribuidor Desforra Apache