Publicado em 27 Ago. 2023 às 18:08, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Política e religião, serpenteiam entre medos e jogos de poder num inspirado thriller policial onde ninguém escapa ileso.
Refere Tarik Saleh, na apresentação de "A Conspiração do Cairo", a inspiração que uma nova leitura de "O Nome da Rosa" lhe trouxe para idealizar o filme, transplantando a narrativa policial do romance de Umberto Eco de uma abadia no século XIV para uma instituição religiosa no Egipto actual.
O assumido paralelismo ganha mais força se pensarmos nas semelhanças de personalidade existentes entre o protagonista Adam e o noviço Adso, até por uma certa paronomásia que ambos os nomes sugerem. Adam é um jovem de uma aldeia piscatória que ganha a oportunidade de migrar para o Cairo para cumprir educação superior em Al-Azhar, lendária instituição universitária ligada ao Islão sunita. Tal como Adso, Adam tem uma postura tímida, inocente, embora seja dotado de grande inteligência.
Assim que chega à universidade, Adam é confrontado com a morte do Grande Imã, a figura maior da instituição. Este facto, com o homicídio de um colega, precipitará os eventos que o levarão a tornar-se informador da Segurança do Estado, autoridade sombra no Egipto, que procura obter informações sobre os possíveis sucessores do Grande Imã, a ser decidido em concílio religioso.
Tarik Saleh salta assim do policial para o thriller político, introduzindo a personagem do Coronel Ibrahim, ligação de Adam com a Segurança do Estado, uma espécie de George Smiley em decadência, mas ainda com a capacidade de mover influências. Aparte a diferença hierárquica, Ibrahim e Adam são personagens com pontos comuns, embora em opostas fases da vida, gente subestimada que usa esse pouco crédito para navegar nas águas turvas em que se vai movimentando a narrativa. Personagens que chegaram a uma libertação através do conhecimento, mas acabaram aprisionadas pelas mesmas razões.
É neste ambiente de guerra fria entre poder político e poder religioso que a acção avança e de onde Saleh pretende extrair uma história sobre as idiossincrasias do poder e de como este arrasta atrás de si os maiores contorcionismos morais sob a velha égide dos fins justificados pelos meios.
Saleh resiste, e reside aí um dos pontos mais inspirados do filme, a fazer de "A Conspiração do Cairo" um aprofundamento crítico, benevolente ou não, sobre o Islão, mantendo o foco na correlação de forças entre política e religião e nas suas diferentes formas de manifestação de autoridade, como forma de mostrar que ambos os sistemas são passíveis de corrupção sobre o conjunto de leis que os próprios sistemas impõem a quem procuram submeter.
Embora o poder religioso apareça personificado por várias entidades - de sheiks a imãs - e ilustrado pela própria organização interna da Universidade - semelhante a um aquartelamento militar, com cantina, pátio, grades e dormitórios – o poder político aparece quase exclusivamente representado por agentes da Segurança do Estado e, quase nunca por figuras da sua tutela política.
Saleh deixa, no entanto, em cenas de exterior, mensagens subliminares representadas por cartazes eleitorais com a cara do Marechal Abdel Fattah al-Sisi, no poder há oito anos depois das manifestações que derrubaram Mohammed Morsi.
Umas das primeiras medidas de Al-Sisi foi encostar a Al-Azhar à parede, usando a imagem do Islão radical no mundo ocidental como arma de arremesso para obrigar a instituição a orbitar numa esfera de influência política. Embora o ultimato tenha inicialmente surtido efeito, a vontade de Al-Sisi em instrumentalizar o poder religioso para ter a chancela do Corão nos seus projectos de lei, provocaram novo afastamento entre o poder político e Al-Azhar, abrindo um conflito entre o Grande Imã e Al-Sisi. Este episódio, tal como interpretado pelo próprio Tarik Saleh, é paradigmático dos motivos abordados em "A Conspiração do Cairo".