Publicado em 27 Abr. 2022 às 09:26, por Pedro Sesinando, em Opinião, Notícias de cinema (Temas: O Espírito da Colmeia)
Banido durante anos em França, o filme de Gillo Pontecorvo permanece um dos grandes filmes de sempre do cinema europeu e um olhar incisivo sobre os conflitos coloniais e os movimentos de libertação.
"Sim, acabou. Antes que tenha o efeito contrário". Esta frase é proferida pelo Coronel Mathieu, comandante dos paraquedistas da República Francesa, durante uma conferência de imprensa por si convocada em que apresenta Ben M'Hidi, alto quadro da Frente de Libertação Nacional (FLN), como um troféu de caça, expondo-o às perguntas dos jornalistas ocidentais.
O filme é a "A Batalha de Argel", realizado em 1966 por Gillo Pontecorvo, que retrata os eventos de guerrilha urbana conduzidos pela FLN contra o ocupante francês em 1956 durante a guerra da Argélia.
Numa obra que não se coíbe de tomar parte é particularmente interessante a forma como Pontecorvo usa a personagem do Coronel Mathieu como agitador da consciência colectiva francesa. A frase supracitada é disso exemplo já que é referida após Ben M'Hidi responder a algumas perguntas que lhe foram colocadas e que lhe permitem expor uma certa hipocrisia da sociedade ocidental relativamente ao colonialismo francês.
O Coronel parece regozijar-se com esse combate retórico entre FLN e jornalistas representantes do progressismo ocidental, alguns seus inimigos domésticos, dando por terminada a roda de imprensa quando entende que já teve a sua vingança perante a intelectualidade que habita a capital do império.
A primeira aparição do Coronel na tela, já o filme leva praticamente uma hora decorrida, não é dada às mesmas subtilezas que observamos no contacto com a imprensa. Pontecorvo apresenta-nos os paraquedistas, liderados por Mathieu, a marchar sobre Argel, numa clara posição de força, de intimidação perante os subversivos e de apaziguamento perante os colonos franceses.
Esta imagem do vilão militarista associada ao Coronel numa primeira instância é lentamente desconstruída e terá o seu cúmulo quando este assume admiração pela bravura militar e intelectual de M'Hidi numa conferência posterior. A opção de Pontecorvo de evitar manter o Coronel numa zona unidimensional e dar-lhe consciência e espírito crítico ajuda a apontar o foco da moralidade para longe de Argel.
Pontecorvo decidiu filmar em Argel, compondo o argumento a partir do livro de memórias de Saadi Yacef, ex-líder da FLN e ele mesmo um dos protagonistas do filme. Embora assuma em entrevistas posteriores estar convencido de que fizera uma obra politicamente neutra, entende-se na forma como retrata as pequenas humilhações próprias de uma força ocupante que Pontecorvo sabia que iria agitar consciências sobre uma situação obviamente difícil de abordar na sociedade francesa. Isso sim, Pontecorvo não optou pela romantização das personagens e não se privou de mostrar os ataques à bomba da FLN, ou as torturas das autoridades francesas.
Talvez tenha sido essa consideração pela crueldade da guerra urbana que o levou a concluir sobre a neutralidade do filme.
Não obstante todo o subtexto que possamos retirar das intervenções do Coronel Mathieu, a verdade é que "A Batalha de Argel" é um filme bastante directo e com uma estética de realismo de guerra que faria escola (vem à mente "Z", de Costa-Gavras, ou "Piazza Fontana", de Giordana).
Muitas das filmagens de rua, de manifestações ou mesmo de confrontos, estão feitas com uma estética muito próxima da reportagem de guerra, algo que, com a utilização de antigos militantes argelinos no lugar de actores, ajuda a passar uma ideia de relato real perante o espectador.
"A Batalha de Argel" deixa de lado algumas polémicas, em particular a relativa à morte de Ali "La Pointe" Ammar, militante da FLN falecido numa explosão provocada pelo exército francês. De acordo com o major francês Aussaresses, o paradeiro de Ammar fora denunciado pelo próprio Saadi Yacef.
A pouca credibilidade do major, no entanto, levou a que a alegação nunca ganhasse grande tracção. Talvez Pontecorvo não tenha querido abrir porta a especulações, talvez simplesmente achasse que já teria como gerar controvérsia suficiente. A verdade é que "A Batalha de Argel" esteve banido em França durante cinco anos.